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A pandemia causada pelo COVID-19 justifica o pedido de revisão contratual?

Comércio parado, shoppings fechados, novas oportunidades desaparecidas e muita gente sem emprego. Essa é a realidade de muitos brasileiros com o desastre ocasionado pela pandemia do COVID-19.

O ano de 2020 chegou com certo otimismo para nós brasileiros. Com as medidas adotadas pelo Governo Federal no final de 2019, que se dariam no ano subsequente, fizeram que os brasileiros tivessem uma grande esperança quanto ao desenvolvimento econômico do pais.

Parece que agora… em plena pandemia, esse “Choque de Otimismo” foi sepultado pelo pensamento de diversos brasileiros, que agora – mais do que nunca – pensam em somente sobreviver e manter suas contas em dia em decorrência do desastre gerado pelo COVID-19.

Nesse ponto, muitas pessoas questionam, será que é possível eu rever o meu contrato de aluguel? O meu contrato com fornecedores? O meu contrato de honorários? O meu contrato de prestação de serviços?

Caro leitores, esta pergunta impõe a análise de diversos requisitos a luz do ordenamento jurídico e das recentes decisões dos Tribunais Brasileiros acerca do tema. Adianto-lhes que não existe uma fórmula, uma receita a ser seguida ou uma estratégia que valha para todos os casos. É preciso, rigorosamente, que tal questão seja analisada casuisticamente.

Sob o prisma do direito contratual, o ponto cabal da discussão e do questionamento levantado por diversos brasileiros diz a respeito se a pandemia será classificada e interpretada pelos Tribunais para efeitos de exclusão de responsabilidade, revisão ou resilição dos contratos. Ainda é cedo para chancelar este entendimento, mas como restará provado ao longo deste artigo, já foram proferidas algumas decisões neste sentido.

Para um melhor debate, antes de se adentrar as decisões propriamente ditas, é preciso revelar que existem algumas teorias do Direito Civil que podem embasar o postulante no pedido de revisão contratual.

Enfim, é possível justificar o pedido de revisão contratual por causa do COVID-19?

O direto contempla, nesta situação excepcionalíssima, o reequilíbrio da área econômico-financeira do contrato pelos seguintes caminhos:

  1. Caso fortuito ou força maior:

A primeira teoria que justificaria o pedido de revisão contratual por causa da pandemia atual seria se o COVID-19 é uma hipótese de caso fortuito ou força maior[1].

O artigo 393 do Código Civil prevê que “o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não eram possíveis evitar ou impedir”.

Da interpretação de tal artigo, entende-se pela conjunção de três elementos cruciais para o afastamento da responsabilidade por ocorrência de caso fortuito ou de força maior: (i) fato necessário, ou seja, um fato que necessariamente impeça ou prejudique a execução do contrato; (ii) efeitos impossíveis de serem evitados ou impedidos; e (iii) não haver previsão contratual expressa de assunção dos prejuízos por qualquer uma das partes nestes casos.

Como assevera o jurista Arnoldo Wald acerca do caso fortuito e da força maior, veja-se:

O Código Civil conceitua o caso fortuito ou de força maior como ‘fato necessário’ cujos efeitos não eram possível evitar ou impedir’ (o termo necessário significa inevitável). Tal definição abrange tanto os fatos naturais (incêndio, inundação), como os fatos de terceiros ou do Poder Público (guerra, ato de governo, desde que caracterizados pela inevitabilidade e irresistibilidade). No Direito brasileiro, o caso fortuito ou a força maior necessita para a sua prova, que deve ser feita por quem o alega, da existência de dois elementos: um objetivo – a inevitabilidade do evento – e o outro subjetivo – a ausência de culpa” (Nossos Grifos)[2]

Ao nosso ver, o Coronavírus pode ser enquadrado em uma situação que caracterize caso fortuito ou força maior, desde que haja um liame, um elo indissociável ou nexo causal na relação de causa e efeito entre a pandemia e a impossibilidade de execução do objeto contratual. A partir dessa premissa as partes poderão alegar a ocorrência de caso fortuito ou força maior como excludente de suas responsabilidades. Lembre-se: deve haver um entrave real e comprovado que justifique o não cumprimento das cláusulas contratuais e tal evento não pode ser pretexto para práticas oportunistas.

  1. Teoria da Imprevisão

Uma outra teoria que poderá ser apresentada para a discussão da necessidade de revisão dos contratos em razão do COVID-19 é a chamada “Teoria da Imprevisão”, disposta no artigo 317 do Código Civil, in verbis: “quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação”.

A teoria da imprevisão[3], entende-se implícita nos contratos, cláusula que desobriga o contratado a seguir executando um contrato desequilibrado.

Segundo esse dilema, fatos imprevisíveis, anormais, fora de cogitação dos contratantes, que tornam o cumprimento do contrato ruinoso para uma das partes, criam uma situação que não pode ser suportada unicamente pelo contratante prejudicado e impõem imediata revisão do ajuste.

Logo, justifica-se a revisão econômico-financeira do contrato sempre que uma circunstância superveniente, extraordinária e imprevisível comprometer o equilíbrio do contrato, tendo desta forma que ocorrer a recomposição dos interesses pactuados, para adequá-los à nova realidade.

A atual pandemia se enquadra no núcleo desse conceito, pois terá repercussão na realidade fatídica dos contratos em vigor, quebrando o seu equilíbrio econômico-financeiro. A guisa de exemplo, de fácil entendimento, é a questão dos shoppings centers. A maioria deles estão fechados e como os lojistas conseguirão arcar com o altíssimo aluguel e demais cláusulas contratuais sem faturamento e com as portas fechadas?

Outros exemplos (i) perda da economia de escala; (ii) elevação cambial excepcional; (iii) aumento de insumos e produtos; (iv) aumento do custo de transporte e logística; (v) seguros mais caros, (vi) atraso de pagamento (vii) custos novos indiretos, entre outras perdas contratuais.

Como alertado anteriormente, o pedido somente terá sucesso, caso esteja devidamente fundamentado tecnicamente, financeiramente e juridicamente.

Como o Judiciário está se comportando quanto a revisão contratual nos dias atuais?

Empresa de eventos, buffet e festas infantis:

A 2ª Vara Cível de Santos concedeu tutela antecipada, permitindo a redução, pelo prazo inicial de 90 dias, de 40% no valor de aluguéis pagos por empresa do ramo de buffet e festas infantis, que totalizavam R$32 mil. Em razão da atual crise desencadeada pela Covid-19 e o consequente fechamento de estabelecimentos comerciais, todos os eventos previstos foram cancelados. De acordo com o juiz Claudio Teixeira Villar, a pandemia do novo coronavírus e as condutas estatais disso decorrentes amoldam-se ao que se desenha na Teoria da Imprevisão, autorizadora da revisão dos contratos ou de uma modulação temporária voltada à sua continuidade. “Trata-se de evento externo, fortuito e de força maior, modificando a realidade prevista no início da contratação e fazendo do seu objeto excessivamente oneroso”, afirmou.

Restaurantes

O juiz Fernando Henrique de Oliveira Biolcati, da 22ª Vara Cível de São Paulo, concedeu liminar para reduzir o valor do aluguel pago por um restaurante em virtude da epidemia da Covid-19 no Brasil, que resultou na redução das atividades e dos rendimentos do estabelecimento. Pela decisão, o restaurante pagará 30% do valor original do aluguel enquanto durar a crise sanitária.

Salões de Beleza

A juíza de Direito Camilla Prado, da 41ª vara Cível do RJ, julgou ser cabível ao Salão de beleza a redução de 50% no aluguel. [4]

Contrato de Locação de Shopping

A juíza Vivian Carla Josefovicz, em atividade na 4ª Vara Cível da comarca de Blumenau, concedeu parcialmente pedido de tutela de urgência feito por um restaurante e, além de determinar a redução do aluguel para a metade do mínimo mensal, suspendeu o pagamento do fundo de promoção e propaganda e impediu a inserção de restrições perante os órgãos de proteção ao crédito em contrato de locação com um shopping de Blumenau. [5]

Direito Educacional

O juiz Flávio César Barbalho, da 3ª Vara Cível da Comarca de Mossoró, concedeu medida liminar para determinar que a Universidade Potiguar (UnP) suspenda o pagamento das mensalidades devidas por um aluno, pelo período de seis meses, bem como se abstenha de cortar a bolsa universitária de 50%, de que goza o autor do pedido, sob pena de bloqueio no valor de R$ 10 mil, com base no artigo 139, IV, do Código de Processo Civil.[6]

Pensão Alimentícia

Em razão da pandemia de Covid-19, o juiz Fernando Henrique Pinto, da 2ª Vara de Família e Sucessões do Foro de Jacareí, fixou para os meses de março, abril, maio e junho de 2020 valor de obrigação alimentar em 30% do salário mínimo nacional. Após o período, em caso de emprego formal, a genitora de adolescente que vive com o pai deverá destinar 20% de seus rendimentos líquidos ao sustento da filha. Anteriormente, uma decisão provisória havia fixado a obrigação alimentar no equivalente a 1/3 do salário da mãe, mas ela pleiteou a diminuição do valor. “Ao contrário do pai da autora, que somente tem essa filha como dependente, e explicitamente relatou ajuda de dois filhos maiores, a requerida possui outra filha sob sua responsabilidade”, destacou o magistrado, afirmando que a pandemia de Covid-19, que tem forçado o isolamento social maciço e reduzido a atividade econômica dos países, está impactando a atividade empresarial exercida pela mãe da autora.

Pagamento de Acordo Trabalhista

O juiz Renato Barros Fagundes, da 23ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, suspendeu o pagamento de parte de um acordo trabalhista entre ex-funcionários de duas empresas de organização de eventos por causa da crise causada pelo coronavírus. Segundo Fagundes, o pagamento das parcelas do acordo trabalhista permanecerá suspenso até o final do estado de calamidade pública no país.

Caros leitores, frente aos variados casos apresentados, existem sim grandes chances de que a jurisprudência future se fixe no sentido de que o coronavírus se caracterizou como uma situação de caso fortuito ou de força maior para a maioria das situações.

Contudo, o futuro ainda é incerto. Já se passaram meses, desde a declaração da Organização Mundial da Saúde (OMS) da pandemia do COVID-19. O momento agora é de focar em medidas factíveis, adequando-se à situação presente e prezando-se pela solução amigável e pelo bom senso pelas partes. Em tempos difíceis, a técnica de negociação pode ser uma válvula de escape frente a judicialização de tais questões.

[1] São fatos ou eventos imprevisíveis ou de difícil previsão, que não podem ser evitados, mas que provocam consequências ou efeitos para outras pessoas. Como por exemplo: fenômenos da natureza, greves gerais (ex: greve dos caminhoneiros), calamidades públicas, guerras e etc.

[2] Direito Civil – Introdução e Parte Geral – Arnoldo Wald. 2015.

[3] Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.

[4] (Autos Nº: 1026645-41.2020.8.26.0100)

[5] (Autos n. 5010372-55.2020.8.24.0008).

[6] (Autos n. 0804997-71.2020.8.20.5106)

Rafael de Sordi Barbosa Martins

Advogado, graduado em direito, com ênfase em direito civil, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2019), inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo (OAB/SP) (2020). Pós-graduando em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, autor de livro e de artigos.

Leonardo Theon de Moraes

Advogado, graduado em direito, com ênfase em direito empresarial, pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2012), inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP) (2012). Pós graduado e Especialista em Direito Empresarial pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (2014), Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2017), Vice Presidente da Comissão de Direito Empresarial da 33ª Subseção da OAB/SP, autor de livros e artigos, palestrante, professor universitário e membro da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP). Sócio fundador da TM Associados.

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