O planejamento sucessório é a forma de organizar e definir como o patrimônio de uma pessoa será distribuído após a sua morte. Embora a morte seja uma realidade inevitável, a maneira como lidamos com ela, especialmente em relação à transmissão de bens e direitos, pode ser planejada de maneira antecipada e cuidadosa.
Esse planejamento visa garantir a ordem e o cumprimento da vontade do falecido, protegendo também os direitos dos herdeiros e evitando conflitos familiares, sendo geralmente envolvido por dois instrumentos principais: a doação em vida e o testamento.
No Brasil, o Código Civil estabelece regras específicas que estabelecem a maneira como a herança pode ser distribuída, especialmente no que se refere à proteção dos herdeiros necessários.
Neste contexto, a legislação brasileira cria um equilíbrio entre a liberdade do testador (quem faz o testamento) e a proteção dos direitos dos herdeiros. Portanto, é essencial entender as formas de doação e testamento, as implicações legais das doações em vida, a parte legítima da herança e os limites impostos pelo Código Civil.
Neste artigo, vamos abordar os principais conceitos relacionados ao testamento e à doação, explorando os diversos aspectos dessas modalidades e como elas se inserem no contexto do planejamento sucessório.
Doação em vida
A doação em vida é uma das formas de transferir bens para outra pessoa ainda durante a vida do doador. Diferente do testamento, que ocorre após a morte, a doação em vida permite que o doador tenha a oportunidade de ver a satisfação de seus desejos enquanto ainda está vivo.
Esse tipo de doação pode ser usado como um mecanismo de planejamento sucessório, permitindo que o patrimônio seja distribuído de maneira gradual, evitando possíveis conflitos no momento da morte.
Importante pontuar que quando o bem doado é um imóvel, a validade da liberalidade exige a lavratura de escritura pública (art. 108, CC) e seu registro na matrícula do imóvel (art. 1.245), pois, sem o registro, a doação não produz efeitos perante terceiros.
Além disso, a doação em vida está sujeita a regras específicas, principalmente no que se refere à parte legítima da herança, que precisa ser respeitada. Ou seja, o doador não pode doar bens que, caso de falecimento, comprometam os direitos dos herdeiros necessários.
Testamento
O testamento é uma forma de declaração de vontades feita por uma pessoa para ser executada após a sua morte. É um dos principais instrumentos do Direito das Sucessões, sendo regulamentado pelos artigos 1.857 a 1.990 do Código Civil brasileiro. Trata-se, portanto, de um ato jurídico unilateral, pessoal e revogável, cuja eficácia se dá após a morte do testador.
Apesar de permitir certa liberdade, o testamento também precisa seguir os limites legais, especialmente em relação à parte legítima, de modo que o testador só poderá indicar livremente quem receberá seus bens somente dentro da parte disponível, que corresponde a 50% do patrimônio total.
Isso significa que o testador pode escolher livremente o destino de apenas 50% de seus bens, a chamada parte disponível.
Existem diversos tipos de testamento previstos pelo Código Civil, entre eles o público, o cerrado e o particular, com formalidades específicas para cada um. Em linhas gerais, tem-se que o testamento:
Público é lavrado em Tabelionato de Notas na presença do tabelião e duas testemunhas, sendo registrado automaticamente na CENSEC (Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados);
Cerrado é escrito pelo testador ou por terceiro, fechado, lacrado e entregue a um tabelião na presença de duas testemunhas para ser guardado. Esse testamento permanece secreto e só tem seu conteúdo revelado após o óbito, podendo ser aberto e lido apenas na presença de um juiz;
Particular é escrito pelo testador e lido a três testemunhas, sendo que depois da morte deve ser confirmado em juízo para produzir efeitos (art. 1.876, CC).
Há ainda modalidades especiais de testamento para situações de guerra ou viagem, tais como o marítimo, aeronáutico ou militar.
O testamento pode abranger uma variedade de disposições, incluindo a escolha de herdeiros, nomeação de um testamenteiro, nomeação de um inventariante, e ainda disposições de cunho não patrimonial.
A exemplo, é possível prever a autorização de acesso de familiares ou procuradores ao prontuário médico do falecido, bem como é possível regular o legado digital, nomeando pessoa de confiança para desbloquear celular, gerir contas de e-mail e redes sociais ou solicitar a exclusão de conteúdos, em conformidade com a LGPD e o Marco Civil da Internet.
Embora não tenham conteúdo econômico direto, essas disposições protegem a dignidade, a intimidade e a memória do falecido, integrando o planejamento sucessório à realidade digital contemporânea.
Em todos os casos, o testamento pode ser revogado ou alterado a qualquer momento, desde que respeitadas as formalidades legais.
Mas afinal, o que é a parte legítima?
A parte legítima é a fração de 50% da herança que, por força da lei, deve obrigatoriamente ser destinada aos herdeiros necessários, que incluem: o cônjuge (ou companheiro), os ascendentes (pais, avós) e os descendentes (filhos, netos).
Em relação ao cônjuge, é importante esclarecer que este só será herdeiro necessário se estiver casado sob regime que lhe assegure vocação sucessória, ou se concorrer com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, CC). Nos regimes de separação absoluta ou participação final nos aquestos, por exemplo, a participação do cônjuge pode variar, sendo importante analisar caso a caso. Ademais, em regra, os ascendentes (pais, avós) só herdam se não existirem descendentes (art. 1.829, II).
Em todo caso, a porção da herança relativa à legítima não pode ser disposta livremente pelo testador, ou seja, ele não pode “deserdar” esses herdeiros, independentemente de sua vontade.
Para um testador que deseja doar seu patrimônio de forma livre, ele pode dispor da chamada “parte disponível” da herança, que é a parte que sobra depois de descontada a parte legítima.
Limites das Doações e Testamento
Tanto a doação em vida quanto o testamento devem respeitar o limite da parte legítima. Caso uma doação ultrapasse esse valor, os herdeiros poderão exigir a devolução dos bens doados ou compensação no momento da partilha.
Além disso, quando uma doação é feita a um herdeiro em vida, ela pode ser tratada como antecipação da legítima. Isso significa que o valor ou bem doado será considerado na hora de calcular a parte que cabe a cada herdeiro no inventário.
Vale esclarecer que somente os descendentes são obrigados à colação (art. 2.002, CC). Doações feitas a cônjuge, companheiro ou terceiros não integram essa conta, salvo se o doador tiver determinado o contrário.
Existe, porém, a possibilidade de o doador incluir uma cláusula de dispensa de colação, que determina que aquele bem doado não será considerado como parte da herança, e sim como um benefício individual ao herdeiro. Essa cláusula pode ser incluída tanto no ato de doação quanto no testamento, desde que respeite o limite da parte disponível.
Algumas outras cláusulas que podem ser inseridas, tanto em doações quanto em testamentos, incluem:
Incomunicabilidade: Impede que o bem doado/testado seja considerado parte da comunhão de bens no casamento do donatário/beneficiário;
Impenhorabilidade: Garante que o bem doado/testado não será penhorado em caso de dívidas do donatário/beneficiário;
Inalienabilidade: Restringe a venda ou transferência do bem durante a vida do donatário/beneficiário;
Usufruto: Concede ao doador/testador ou a outra pessoa o direito de usar o bem doado/testado enquanto viver;
Reversão: Permite ao doador determinar que o bem volte automaticamente ao seu patrimônio, ou à pessoa previamente indicada, se o donatário falecer antes dele (art. 547 do CC). Em testamentos não há reversão, pois se o herdeiro instituído morrer antes do testador, a disposição caduca, salvo se o testador tiver previsto substituição vulgar nos termos dos arts. 1.947 e s.s. do Código Civil.
Outros limites podem ser impostos pelo doador/testador, como condições ou estipulações sobre a utilização do bem. No entanto, essas disposições não podem violar a parte legítima ou as normas sobre os direitos dos herdeiros necessários.
Conclusão
Doar bens ou deixar um testamento são formas legítimas de decidir sobre o destino do próprio patrimônio. No entanto, é fundamental compreender que existem regras que devem ser seguidas, especialmente no que diz respeito à proteção dos herdeiros necessários.
Ao utilizar doações em vida e testamentos, é possível estabelecer condições que garantem a continuidade dos bens e a manutenção de um legado familiar. O planejamento sucessório adequado assegura que seus bens sejam transmitidos de acordo com sua vontade, ajuda a evitar conflitos, reduz custos e, ao mesmo tempo, respeita os direitos dos herdeiros.
Contudo, é imprescindível lembrar que tanto a doação em vida quanto a transmissão por testamento estão sujeitas ao ITCMD, imposto estadual cujas alíquotas e faixas de isenção variam significativamente de acordo com a legislação local. Avaliar antecipadamente o impacto desse tributo, e, quando pertinente, escalonar doações ao longo do tempo, pode representar economia relevante e aumentar a eficiência do planejamento.
Portanto, as dimensões patrimoniais, familiares e fiscais devem ser analisadas de forma integrada, preferencialmente com assessoria jurídica e contábil especializada.
REFERÊNCIAS:
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Camila dos Santos
Graduada em Direito pelo Centro Universitário Padre Anchieta (2024). Autora de Artigos. Paralegal no TM Associados.
Helen Rodrigues de Souza
Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, Seção São Paulo (OAB/SP) (2019). Formação em Direitos Humanos e Sociais pela Universidade Católica Portuguesa de Lisboa (2020). Formação em Data Protection Officer – Lei Geral de Proteção de Dados pelo Complexo de Ensino Renato Saraiva (2021). Faculdade Formação em Temas Avançados de Direito Público e Privado pela Universidade de Santiago da Compostela (2021). Master in Business Admnistration em Gestão Tributária pela Universidade de São Paulo e pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (2022). Participação no livro “Tributação no Agronegócio”, pela editora Lumen Juris (2023). Formação em Contencioso Estratégico pela Fundação Getúlio Vargas (2024). Pós-graduada em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2024). Cursando Latin Legum Magister em Direito Societário e Mercado de Capitais pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais de São Paulo. Autora de artigos. Secretária-Geral da Comissão de Direito Empresarial da OAB/SP 33ª Subseção Jundiaí/SP. Advogada e Coordenadora do Departamento Consultivo no TM Associados.