Transpasse: Compra e venda de estabelecimento empresarial
O contrato de trespasse regula a alienação de estabelecimentos empresariais, garantindo continuidade do negócio. Exige formalidades, atenção a dívidas, aspectos tributários e sucessão de obrigações.
I. Introdução
O contrato de trespasse, regulado pelos arts. 1.142 a 1.149 do CC (lei 10.406/02), é a alienação de um estabelecimento empresarial como unidade organizada de bens materiais e imateriais, destinados ao exercício da atividade econômica. A operação inclui ativos como equipamentos, mercadorias, marcas, patentes e contratos relacionados à empresa, conforme definido por Rubens Requião (2003). O trespasse deve ser formalizado por escrito, registrado na junta comercial e publicado, para garantir sua validade e eficácia perante terceiros.
A especificidade do trespasse está em sua finalidade econômica: não se trata apenas da venda de bens, mas da transmissão da continuidade do negócio, preservando a clientela e o potencial lucrativo. Nesse sentido, a doutrina aponta que o trespasse não extingue a pessoa jurídica, mas transfere sua exploração a outro sujeito de direito.
II. Natureza jurídica
Do ponto de vista jurídico, o trespasse possui natureza de contrato típico e bilateral, caracterizado por ser oneroso, comutativo e translativo. É considerado um contrato intuitu personae em alguns aspectos, especialmente na exigência de aprovação de terceiros interessados, como credores.
Os elementos essenciais do contrato de trespasse incluem: o objeto (o estabelecimento empresarial), o preço (contraprestação monetária ou equivalente), o consentimento das partes e o cumprimento de formalidades legais. Segundo Modesto Carvalhosa (2020), a natureza jurídica do trespasse está intrinsecamente ligada à teoria das universalidades, uma vez que o estabelecimento empresarial é tratado como um todo unitário, cuja alienação ocorre em bloco.
III. Diferença entre alienação de estabelecimento empresarial e participação societária
Embora o trespasse e a alienação de participação societária possam gerar efeitos semelhantes na estrutura empresarial, eles se distinguem em essência e alcance. No trespasse, o objeto do contrato é o estabelecimento empresarial, enquanto na alienação de participação societária, o objeto é a titularidade das quotas ou ações que compõem o capital social.
No primeiro caso, há transferência de ativos componentes do estabelecimento empresarial da pessoa jurídica, permitindo ao adquirente explorar diretamente o negócio, através do então adquirido, estabelecimento. No segundo, o controle societário pode ou não ser transferido, dependendo da proporção das quotas ou ações alienadas.
Na compra e venda do estabelecimento empresarial, ou seja, no contrato de trespasse, a titularidade da pessoa jurídica (seja da vendedora ou da compradora) a não muda, o que muda é a titularidade do estabelecimento. Por sua vez, no caso de cessão integral das quotas ou ações de uma sociedade – transferência da titularidade societária – quem adquire as quotas ou ações, também adquire, automática e necessariamente, o estabelecimento comercial, não se faz necessário realizar contrato de trespasse – dado que o estabelecimento comercial faz parte do patrimônio da pessoa jurídica.
Fabio Konder Comparato (2019) salienta que, no trespasse, o foco está na continuidade do empreendimento, enquanto na alienação societária, o foco está na alteração da composição dos sócios.
Trespasse
- Com a compra e venda apenas do estabelecimento, muda-se a titularidade do complexo de bens que o caracterizam. Passa-se de uma PJ para a outra, sem que a sociedade alienante do estabelecimento sofra alteração em sua titularidade;
- Apenas o estabelecimento é transferido de uma sociedade para outra, mantendo-se, pois, a mesma participação societária da PJ alienante e da adquirente.
Alienação participação societária
- Com a compra e venda de participação societária, transfere-se a titularidade da sociedade, que passa a ter novo quadro societário;
- A sociedade que foi adquirida continua proprietária/titular do estabelecimento, o que se altera são os sócios da sociedade.
IV. Aspectos societários e de sucessão empresarial
Do ponto de vista societário, o trespasse pode implicar alterações na estrutura organizacional, especialmente quando envolve sociedades limitadas ou anônimas. Nessas situações, pode ser necessário observar o contrato social ou estatuto para verificar a exigência de aprovação pelos sócios ou acionistas. Como aponta Arnoldo Wald (2022), o trespasse não extingue a personalidade jurídica da empresa, mas transforma a titularidade de seu patrimônio.
O trespasse provoca a sucessão do adquirente nas obrigações e contratos vinculados ao estabelecimento empresarial, respeitando-se as disposições legais e contratuais. Conforme o art. 1.146 do CC, o adquirente responde pelas dívidas anteriores à alienação, salvo se houver quitação por parte do alienante ou se o credor expressamente consentir com a exclusão de sua responsabilidade.
O aviamento (capacidade de gerar lucro/receita, ativos e passivos contabilizados no balanço patrimonial) do estabelecimento deve ser apresentado pelo empresário alienante, sendo esta uma obrigação contratual do trespasse, apresentando informações verídicas, sob pena de resolução do contrato e indenização correspondente ao adquirente.
É importante, pois, a realização de uma due diligence prévia, antes de se celebrar a operação de trespasse, tendo em vista os riscos a passivos diversos que se pode apresentar, seja de natureza cível, tributária, trabalhistas, entre outros.
A responsabilidade civil do trespassário/adquirente limita-se ao passivo declarado/contabilizado no balanço patrimonial. O alienante responde solidariamente, por um ano (prazo decadencial), pelas dívidas vencidas e pelas contraídas antes do trespasse que estão a vencer (um ano contado a partir do vencimento).
Nos termos do art. 1.148 do CC, com a transferência do estabelecimento, os contratos relativos a ele são sub-rogados ao adquirente. Este passa a figurar como parte da relação no lugar do alienante, salvo se a obrigação do contrato for de caráter pessoal (obrigação personalíssima à pessoa – física ou jurídica – que deve cumpri-la) ou existir previsão de resolução por justa causa, oportunidades nas quais o terceiro poderá rescindir o contrato no prazo (decadencial) de 90 dias, contados a partir da publicação da transferência, ressalvada, nestes casos, a responsabilidade do alienante.
Quanto a mais, é importante pontuar os reflexos trabalhistas do trespasse. Compulsando-se o art. 448 da CLT, mudanças na propriedade (alteração na titularidade societária) ou na estrutura jurídica (transferência, por exemplo, do estabelecimento) não afetam os contratos de trabalho. Pressupõe-se, portanto, que no trespasse há a transferência automática dos contratos de trabalho e de todas as obrigações trabalhistas ao adquirente do estabelecimento.
Ressalta-se ainda que as obrigações trabalhistas limitam-se àquelas do estabelecimento adquirido. De sorte que, no caso de ser realizado trespasse do estabelecimento da filial da sociedade alienante, necessário se faz esclarecer se determinado funcionário está vinculado ao estabelecimento da sede ou da filial.
V. Produção de efeitos do trespasse perante terceiros
Para que o trespasse produza efeitos perante terceiros, é indispensável o cumprimento de requisitos formais. O art. 1.144 do CC exige o registro do contrato no registro público de empresas mercantis e sua publicação em meio oficial.
Se não der publicidade, o contrato terá validade e produzirá efeito inter partes, mas não poderá ser oponível a terceiros. Essas formalidades têm como objetivo proteger os credores, empregados e demais interessados, assegurando transparência e publicidade na operação. A inobservância desses requisitos pode levar à ineficácia do contrato, comprometendo sua validade perante terceiros e permitindo questionamentos judiciais.
Caso a parte alienante não possua patrimônio/bens suficientes para o pagamento do passivo relacionado ao estabelecimento vendido, a eficácia do contrato ficará na dependência do pagamento de todos os credores ou do consentimento/anuência destes com a transferência (inteligência do art. 1.145 do CC).
Por conta disso, os atos da operação devem ser publicados em mídia oficial, dando se inicio ao prazo decadencial para oposição dos credores. Durante este prazo, os credores poderão se opor ou consentir expressa ou tacitamente (omissão configura concordância tácita – não pode ocorrer oposição após passado o prazo). Caso um credor se oponha, ou alguns, a eficácia do contrato perante terceiros só ocorre após o pagamento deste (s).
Na hipótese de a parte alienante possuir ativo/bens suficientes, aos credores apenas é dada ciência, sem ser necessário anuência.
Caso identificada fraude, a operação pode ser considerada como ineficaz ou, também, como um ato de falência. Trata-se, neste último caso, de hipótese de pedido de falência pelos credores, nos moldes do art. 94, III, “c”, e do art. 19, VI, da lei 11.101/05.
A partir do momento da publicação do trespasse, os credores cumprirão com suas obrigações diretamente com o adquirente, salvo se, de boa-fé (o credor tem de comprovar), já tiver cumprido com suas obrigações com o alienante (art. 1.149 do CC).
No que diz respeito a concorrência, após a alienação do estabelecimento empresarial, o alienante não poderá fazer concorrência ao adquirente nos cinco subsequentes à venda, salvo se no contrato de trespasse prever prazo diverso (art. 1.147 do CC).
Arrendamento/leasing e usufruto do estabelecimento empresarial
Ressalta-se, ainda, que, tanto no arrendamento/leasing quanto no usufruto, há implicações relevantes quanto à exploração da atividade empresarial pela parte arrendatário. No arrendamento ou leasing, o art. 1.144 do CC estabelece que a pessoa jurídica arrendadora não poderá explorar a mesma atividade empresarial enquanto perdurar o contrato, evitando, assim, práticas concorrenciais que possam desviar clientela ou comprometer a continuidade do negócio pelo arrendatário.
De forma análoga, no usufruto de estabelecimento empresarial, o art. 1.393 do CC impede que o nu proprietário concorra com o usufrutuário na exploração da atividade objeto do contrato, em respeito à boa-fé contratual e à função social da empresa. Essas disposições reforçam o princípio da proteção à continuidade do negócio, um dos pilares fundamentais do trespasse, assegurando a exclusividade no exercício da atividade empresarial durante o prazo estipulado no contrato.
VI. Aspectos tributários
A operação de trespasse gera diversas implicações tributárias. Poderá incidir o ITBI sobre a transferência de imóveis incluídos no estabelecimento, há também a possibilidade de tributação pelo IRPJ sobre ganhos de capital obtidos pelo alienante. A classificação tributária dos ativos transferidos, como estoques e intangíveis, ainda, pode afetar a base de cálculo do PIS e COFINS.
Por outro lado, não incide ICMS ou IPI na celebração do contrato de trespasse. Caso haja crédito tributário perante a RFB, estes serão mantidos no estabelecimento objeto do trespasse e serão transferidos junto com o estabelecimento e utilizados pelo adquirente dentro das possibilidades legalmente permitidas.
Além disso, a sucessão tributária prevista no art. 133 do CTN (lei 5.172/66) impõe ao adquirente a responsabilidade pelos tributos devidos pelo alienante, salvo nos casos de prévia autorização do fisco para transferência sem ônus. Segundo Hugo de Brito Machado (2021), é imprescindível que as partes realizem uma due diligence tributária antes da formalização do trespasse, a fim de evitar passivos ocultos.
Se o alienante não mais explorar a atividade, a responsabilidade do adquirente é integral. Do contrário, dando continuidade o alienante a exploração da mesma atividade empresarial ou, até mesmo, em outro ramo industrial/comercial, respondente o adquirente subsidiariamente ao alienante pelos débitos tributários, pelo período de seis meses a contar da data da alienação, da data em que foi realizado o trespasse.
VII. Conclusão
O trespasse é um instituto jurídico de grande relevância para o direito empresarial, permitindo a continuidade das atividades econômicas sem ruptura. Sua regulamentação no CC oferece segurança jurídica às partes envolvidas e proteção aos interesses de terceiros, como credores, colaboradores e o fisco.
Apesar de sua potencialidade como instrumento de reorganização empresarial, o trespasse exige atenção às formalidades legais, aos aspectos tributários e à sucessão de direitos e obrigações. Assim, é fundamental que empresários e operadores do direito compreendam suas peculiaridades, garantindo a eficiência e a legalidade da operação.
BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Brasília: Presidência da República. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2024.
BRASIL. Código Tributário Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Brasília: Presidência da República. Disponível em: . Acesso em: 17 nov. 2024.
CARVALHOSA, Modesto. Curso de Direito Comercial. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020.
COMPARATO, Fabio Konder. O Poder de Controle na Sociedade Anônima. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
MARTINS, Fran. Curso de Direito Comercial. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018.
PAULSEN, Leandro. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da doutrina e da jurisprudência. 26ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 26ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
WALD, Arnoldo. Curso de Direito Empresarial. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022.
https://www.migalhas.com.br/depeso/421035/trespasse-compra-e-venda-de-estabelecimento-empresarial
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